Terceira Parte de artigo de Jorge Luiz Souto Maior, Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e Juiz do Trabalho em São Paulo

 PL 4.330, o Shopping Center Fabril: Dogville mostra a sua cara e as possibilidades de redenção
 
(PARTE 3 DE 3)
 
Jorge Luiz Souto Maior
 
(Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho)
 
Na perspectiva do setor público, que não se encaixa nem perifericamente ao argumento da justificativa do projeto no aspecto da modernidade do processo produtivo, a terceirização aparece como mera estratégia de diminuição de custos para proporcionar ajustes orçamentários. O projeto bem que tenta uma justificativa jurídica para a terceirização no setor público, com os seguintes argumentos:
 
"No caso de contratação com a Administração Pública, o projeto remete à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que 'regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências'.
 
Isso significa que a Administração Pública é solidariamente responsável quanto aos encargos previdenciários, mas não quanto às dívidas trabalhistas". – grifou-se
 
Esquece-se, no entanto, de forma proposital, que os serviços referidos do inciso XXI, do art. 37, da Constituição Federal, não são os serviços atinentes à dinâmica permanente da Administração, pois para tais serviços, que são executados por servidores públicos, há o requisito do concurso público, previsto nos incisos I e II do mesmo artigo, sendo que as únicas exceções se situam no âmbito do percentual dos cargos de confiança e da execução de tarefas temporárias de caráter excepcional.
 
É tão óbvio que a expressão serviços contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário. Ora, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta os incisos I e II não teriam qualquer eficácia, já que ficaria na conveniência do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para a execução do serviço.
 
O inciso XXI, evidentemente, não pode ter tal significação. Tomando o artigo 37 em seu conjunto, os “serviços”, tratados no inciso XXI, só podem ser entendidos como algo que ocorra fora da dinâmica permanente da administração.
 
Não se pode entender, a partir da leitura do inciso XXI, que o ente público, para implementar uma atividade que lhe seja própria e permanente, possa contratar trabalhadores por meio de empresa interposta, até porque, se pudesse, qual seria o limite para isto? Afinal, serviço é a o que realizam todos os que trabalham no ente público. O que fazem os juízes, por exemplo, senão a prestação de serviços ao jurisdicionado?
 
Se na expressão “serviços”, a que se refere o inciso XXI, pudessem ser incluídos os serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente não haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam, naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não declarado da discriminação, retomando, ademais, o caráter escravista que influenciou a formação da sociedade brasileira. Mas, isto, como se sabe, ou se deveria saber, fere frontalmente os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.
 
Vale a pena perceber que o PL 4.330 não limita as possibilidades de terceirização e a Lei n. 8.666/93, citada no projeto, também não estabelece um critério para diferenciar o serviço que pode ou não ser terceirizado. Assim, em breve se verá o argumento de que a nova lei permitiu uma terceirização mais ampla – e até irrestrita – também no serviço público. Claro que se pode objetar a essa previsão com o argumento de que uma ampliação irrestrita da terceirização no setor público não teria respaldo constitucional. No entanto, a Constituição também não dá guarida à terceirização nos serviços de limpeza e de vigilância e mesmo assim ela está aí, sem qualquer enfrentamento de constitucionalidade, sendo praticada nos próprios entes responsáveis pela aplicação da Constituição...
 
Concretamente, na esfera do serviço público, já se pode verificar a perversidade do projeto com o reforço da ideia de que o ente público não é responsabilizado pelos direitos trabalhistas dos terceirizados. Ou seja, comete-se uma agressão à Constituição, que não permite a terceirização no setor público, e tenta-se levar a situação ao extremo, afastando o ente público da obrigação de garantir a efetividade dos direitos daqueles que lhe prestam serviços, sob o falso manto da legalidade, qual seja, o art. 71, da Lei n. 8.666/93, que, em verdade, sequer teria aplicação no caso. Ora, se a Constituição não traz qualquer regra prevendo a terceirização no setor público como a lei infraconstitucional pode regular tal situação fática?
 
De fato, a Lei n. 8.666/93, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de licitação, considera como “Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo o seu caráter temporário, conforme previsão do art. 8o. da mesma lei: “A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua execução.” – grifou-se
 
Mas, nada disso interessa para os defensores da terceirização. O que interessa mesmo é formalizar um ajuste entre os interesses econômicos e políticos em torno do comércio de gente. O econômico caracterizado pela a lógica da redução do custo, o aumento da exploração e a destruição concreta das possibilidades de resistência por parte da classe trabalhadora. O político pela preservação do poder, o que é favorecido pelo ato de agradar ao poder econômico, sem desconsiderar os interesses orçamentários dos entes públicos, que se dá com a redução do custo da mão-de-obra que a terceirização possibilita e com a manutenção da eficiência em termos de arrecadação. Veja-se, neste último aspecto, que, nos termos do projeto, ao contrário do que se passa com os direitos trabalhistas, é solidária a responsabilidade das empresas tomadoras no que se refere às contribuições previdenciárias.
 
É fácil perceber, portanto, toda a maldade tanto do governo federal quanto de parte relevante do empresariado brasileiro ao sustentarem a estrutura valorativa trazida no PL 4.330. E não adianta tentarem escamotear, dizendo que estão fixando garantias para que os direitos dos terceirizados sejam respeitados, pois a sociedade brasileira que foi às ruas não será mais facilmente enganada. Os donos do poder parecem que ainda não entenderam isso. Não compreenderam que os gritos das ruas são resultado de uma insatisfação com as estruturas de poder que nos tenta ludibriar. Também desprezam os compromissos cristalizados constitucionalmente, dentre os quais, vale destacar: a dignidade humana, o valor social do trabalho, a função social da propriedade, a moralidade administrativa, a prevalência dos direitos humanos e o desenvolvimento de uma ordem econômica pautada pelos ditames da justiça social.
 
Imagina-se que quanto ao governo federal ainda haja tempo de uma redenção, rechaçando o projeto, retirando as suas propostas, e iniciando uma política de reversão da terceirização no setor público. De forma mais concreta, apresenta-se, no momento, a chance de redenção ao Congresso Nacional, que se daria mediante rejeição do projeto e das propostas do governo. Essa possibilidade também se apresenta para a parte do segmento empresarial brasileiro que se diz socialmente responsável e que pauta sua conduta na lógica do desenvolvimento econômico e social do país, apoiando a derrota do projeto no Congresso.
 
Há de se considerar, ainda, a possibilidade de redenção de uma parte da própria classe trabalhadora, que, a bem da verdade, ao longo de anos se associou ao capital no processo de legitimação da terceirização sob a perspectiva egoísta de não dividir o bolo de eventuais conquistas econômicas ou garantias jurídicas com um maior número de trabalhadores, ainda mais com o tal pessoal da limpeza e das portarias, empenhando-se, pois, não apenas na reprovação do projeto e das propostas do governo como também na luta pelo fim da terceirização.
 
Se forem ultrapassadas essas oportunidades e o projeto, com ou sem as emendas sugeridas pelo governo, vier a ser aprovado, abrir-se-á, então, aos entes representativos das classes trabalhadores a sua chance de redenção, retomando, enfim, um direcionando de luta concreta em defesa dos interesses dos trabalhadores, sem preocupação direta com os efeitos dessa luta para a sustentabilidade do governo, redimindo-se, inclusive, do fato de terem se sentado à mesa com empresários e governo para entrar em acordo com relação à regulamentação da terceirização quando, de fato, tinham que se opor a todo tipo de terceirização, dado o notório efeito de supressão da condição humana dessa estratégia produtiva, conforme verificado ao longo de 20 (vinte) anos de experiência concreta.
 
Nesta perspectiva é importante que a classe trabalhadora perceba que nem mesmo a mera rejeição do PL 4.330 constitui uma vitória completa, vez que a terceirização que está aí precisa ser combatida, na medida em que agride vários preceitos jurídicos, sobretudo no âmbito do setor público, tendo se apresentando, de fato, como uma espécie de semi-escravidão.
 
Se nenhuma dessas redenções sobressair e o projeto passar e virar lei, muitos problemas podem desde já ser vislumbrados, além daqueles já destacados.
 
O primeiro, inegavelmente, é o da insegurança jurídica para todos que constituam relações jurídicas a partir do pressuposto exclusivo das regras do referido projeto e, principalmente, sob as bases das previsões relacionadas na proposta do governo no que tange à terceirização no campo e por intermédio de cooperativas de trabalho, isso porque esse conjunto de regras fere vários princípios e institutos jurídicos do direito constitucional, dos direitos humanos e do direito do trabalho. A intenção da lei, assim votada, visando favorecer aos interesses econômicos de alguns segmentos empresariais e políticos do governo não se amolda, obviamente, ao projeto constitucional de elevação da condição humana a partir dos valores já mencionados. Lembre-se que as relações de trabalho são reguladas pelo direito do trabalho, cujo princípio é o da elevação progressiva das condições sociais e econômicas dos trabalhadores, estando coibida a lógica do retroceder.
 
Vale frisar que a insegurança jurídica destacada não diz respeito apenas aos custos da invalidade da terceirização, por aplicação, por exemplo, da teoria da subordinação estrutural, como determinante da relação de emprego, incluindo, também, a teoria da subordinação em rede, que serve para reatar os vínculos jurídicos entre o verdadeiro capital e o trabalho, com a consequente responsabilização social, mas também pertinentes aos custos que decorram de indenizações por dano moral individual e por dano social, na medida em que a prática agressiva à condição humana constitui, por si, grave atentado à ordem jurídica individual e social.
 
Lembre-se que o próprio PL considera que o pagamento por parte da empresa tomadora de serviços de dívidas que seriam, sob a ótica exclusiva do PL, prioritariamente da empresa prestadora gera para a empresa tomadora o direito ao recebimento de uma indenização da empresa prestadora, além do ressarcimento do valor pago.
 
Ora, com muito mais razão o empregado que prestou seu serviço e não recebeu os valores correspondentes aos seus direitos no momento oportuno, sendo que tais direitos com relação ao empregado possuem natureza alimentar, tem direito, óbvia e objetivamente, ao recebimento de uma indenização, o que não inibe a indenização devida à sociedade pelo ferimento do projeto constitucional em torno da formação de um capitalismo socialmente responsável.
 
O segundo, o do atolamento do Judiciário em conflitos sem fim, tanto no que se refere às diversas discussões jurídicas geradas pelas múltiplas contratações, relações promíscuas e supressões de direitos, assim como no que se referem àquelas que digam respeito a situações mais graves como a do trabalho em condições análogas à escravidão e a dos acidentes do trabalho.
 
Claro que, fazendo um exercício otimista, pode até ser que a solidariedade de classe se reconstitua das cinzas. Afinal, como efeito real, a terceirização deixaria de existir, pois se todos são terceirizados, nenhum trabalhador de fato é. Assim, os que hoje são “efetivos”, que são contratados diretamente pela grande empresa, atuando na linha de produção, e que chegam a considerar que a luta contra o PL 4.330 não lhes diz respeito, se verão, em pouquíssimo tempo, envolvidos numa relação de trabalho terceirizada e se sentirão tão segregados quanto hoje se sentem o trabalhador da limpeza e o vigilante.
 
As perguntas que ficam são: que tipo de racionalidade produzirão todos esses trabalhadores quando sua consciência de classe for reconstruída sob a base do reconhecimento de que esse sistema econômico e político que aí está os conduziu ao fundo do poço? Que os submeteram a uma exploração assumidamente desumana e ideologicamente violenta... Estarão esses trabalhadores dispostos a dialogar, a se associar e a renegociar com esses setores político e econômico? Experimentando a sensação de poder, advindo da consciência e da ação coletiva descomprometida com interesses políticos partidários desvinculados de uma racionalidade de classe, estarão dispostos a perdoar aqueles que, com requintes de crueldade, desconsideraram a sua condição humana e levaram adiante um projeto assediante para se aproveitarem, sem qualquer limite, do seu estado de vulnerabilidade?
 
Não sei as respostas e não me compete fazer conjecturas a respeito. As indagações ficam, de todo modo, como uma reflexão para aqueles que têm demonstrado possuir interesse direto na aprovação do PL 4.330, tal qual foi apresentado ou nos termos das propostas trazidas pelo governo, sendo certo que as ruas continuarão se apresentando como um palco privilegiado para a produção e a difusão do conhecimento popular e classista necessário para um posicionamento a respeito desse tema tão relevante no processo da construção de uma sociedade brasileira efetivamente mais justa e solidária.