O dia 30 de julho é conhecido, nacional e internacionalmente, como o “Dia de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”. A data foi instituída em 2013, pela Resolução A/RES/68/192, da Assembleia Geral das Nações Unidas, a qual destacou a importância de um marco para a “criar maior consciência da situação das vítimas do tráfico de seres humanos e promover e proteger seus direitos".

O dia 30 de julho é conhecido, nacional e internacionalmente, como o “Dia de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”. A data foi instituída em 2013, pela Resolução A/RES/68/1921, da Assembleia Geral das Nações Unidas, a qual destacou a importância de um marco para a “criar maior consciência da situação das vítimas do tráfico de seres humanos e promover e proteger seus direitos".

Tráfico de pessoas, segundo o Protocolo de Palermo, “significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”

O tráfico de pessoas é considerado umas das formas mais graves de violação dos direitos humanos. Trata-se de crime de alta complexidade e de difícil enfrentamento, pois envolve fatores socioeconômicos, culturais, psicológicos, além de movimentar bilhões de dólares anualmente2.

Segundo estimativas globais da ONU, cerca de 2 milhões de pessoas são vítimas do tráfico humano a cada ano3, sendo os alvos preferenciais dos traficantes as pessoas vulneráveis. De acordo com relatório Global Report on Trafficking in Persons4, do Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime (UNODC), mulheres são as mais afetadas: em 2018, para cada 10 vítimas detectadas globalmente, cinco eram mulheres adultas e duas eram meninas. Migrantes, em especial aqueles que não têm permissão para trabalhar ou permanecer no país de exploração, constituem grupo particularmente vulnerável e são parcela significativa das vítimas encontradas globalmente. Estudos recentes apontam também para a vulnerabilidade de crianças e jovens LGBTQI+ ao tráfico de pessoas para trabalho forçado e exploração sexual.

Tráfico de pessoas para exploração sexual e para trabalho forçado são as modalidades de exploração mais recorrentes. O último responde por 38% dos casos de tráfico de pessoas detectados globalmente em 20185

O combate ao tráfico de pessoas, no plano internacional, ganhou projeção em 2000, com a edição do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo, já referido, e que é parte complementar da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo

O Protocolo, que conta hoje com 178 Estados Partes6, foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto no 5.017, de 12 de março de 2004. A partir da ratificação, o Governo Federal criou, em 2006, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, para concretizar a Política, implementou três Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), sendo que o III PNETP, atualmente em vigor, estabelece metas até 2022.

Em 2016, o país adotou marco regulatório específico para o crime de tráfico de pessoas: a Lei 13.344/2016, que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, conhecida como novo Marco Legal para o combate ao tráfico de pessoas. A lei segue os três eixos dispostos no Protocolo de Palermo: prevenção, repressão ao crime e proteção às vítimas. 

Referido Marco Legal introduziu o artigo 149-A7, no Código Penal, tipificando o crime de tráfico de pessoas também para fins de exploração do trabalho escravo, remoção de órgãos e adoção ilegal, suprimindo a lacuna legislativa até então existente, que apenas regulava internamente o crime de tráfico para exploração sexual (então tipificado nos artigos 231 e 231-A, do Código Penal, revogados pela nova lei). 

Ainda como parte dos esforços coordenados para o combate ao tráfico de pessoas, em 2017 foi editada a Lei n. 13.445, que institui a Lei de Migração e revogou o Estatuto do Estrangeiro. A nova Lei de Migração garante aos migrantes não nacionais a permanência em território nacional nos casos em que submetidos ao tráfico de pessoas, trabalho escravo ou que tenham sofrido violação de direito agravada por sua condição migratória, com vistas a minimizar sua vulnerabilidade e promover o acolhimento, indo ao encontro do que já dispunha o Marco Legal para o combate ao tráfico de pessoas.

Vale esclarecer que as lacunas do ordenamento jurídico brasileiro no que se refere ao tráfico de pessoas para exploração do trabalho em condição análoga à de escravo foi historicamente preenchida por políticas públicas, centradas no conceito do artigo 149, do Código Penal, aprimorado pela Lei nº 10.803/2003, e que trouxe avanços significativos na luta contra o trabalho escravo no Brasil. Atualmente, à luz da legislação vigente, é indene de dúvida de que as figuras do tráfico de pessoas para fins de exploração laboral e a submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravo são fenômenos intrinsicamente conectados.

O Brasil conta com intensa articulação entre os entes federativos, com Rede Nacional composta por Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NTEPS) e Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM). Além disso, conta com estruturas específicas de coordenação de combate ao trabalho escravo, como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), as Comissões Estaduais de Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAES) e as Comissões Municipais de Erradicação do Trabalho Escravo (COMTRAE). Nos últimos anos, NETPs e COETRAES têm atuado de forma coordenada no combate ao tráfico de pessoas e trabalho escravo.

Apesar da forte estrutura e das melhorias recentes, o Governo do Brasil ainda não cumpre satisfatoriamente os padrões internacionais para a eliminação do tráfico de pessoas. O Relatório Trafficking in Persons Report – 2021, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, classificou o Brasil no nível 2 da lista de observação8, apontando que ainda persistem inadequações quanto aos mecanismos de proteção às vítimas, mapeamento do crime, disponibilização de dados e falta de punição adequada aos traficantes. O resultado apontado no relatório TIP vai ao encontro dos dados do observatório Monitora 8.7 – Smart Lab9, que fiscaliza o cumprimento do III Plano Nacional de Enfretamento ao Tráfico, e que aponta que, em julho de 2021, de um total de 120 indicadores, 62 não foram cumpridos e 16 foram apenas parcialmente cumpridos.

Agentes públicos e sociais envolvidos no combate ao crime são uníssonos em apontar que a situação das vítimas de tráfico tende a se tornar dramática nos próximos anos, considerando os reflexos sociais e econômicos da pandemia da COVID 19. O relatório Trafficking in Persons Report – 202110, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, aponta para preocupação em nível global, tendo em vista o aumento significativo do número de pessoas vulneráveis ao tráfico de seres humanos em decorrência dos efeitos nefastos da pandemia. No Brasil, particularmente, houve significativa diminuição da ação fiscalizatória e desaparelhamento do Estado, fazendo com que o problema do tráfico de pessoas se torne invisível para a sociedade, que não recebe informações claras sobre sua incidência. Sem fiscalização adequada, há agravamento da exploração, valendo-se os traficantes do atual estado de extrema miserabilidade econômica que assola não apenas o Brasil, mas demais países da América Latina.

Resposta eficaz ao problema do tráfico de pessoas depende de vontade política e articulada dos Governos Federal, Estadual e Municipal, juntamente com a sociedade civil. O combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo deve se dar de forma transversal, tendo como centralidade a promoção do trabalho decente, o respeito ao trabalhador migrante e o crescimento sustentável do setor econômico, já que não se pode admitir o progresso econômico baseada na exploração dos seres humanos. É ainda de fundamental importância fortalecer as formas de prevenção, de repressão ao delito e dos mecanismos de atenção às vítimas, em particular aqueles estabelecidos nos marcos normativos internacional e nacional do tráfico de pessoas.

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DENISE PASELLO VALENTE é advogada, mestre e doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo, e autora do livro “Tráfico de pessoas para exploração do trabalho”.

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1ASAMBLEA GENERAL. Resolución aprobada por la Asamblea General el 18 de diciembre de 2013. Disponível em: https://undocs.org/es/A/RES/68/192. Acesso em: 28/07/2021.

2 “Segundo a ONU, o tráfico de pessoas movimenta anualmente 32 bilhões de dólares em todo o mundo. Desse valor, 85% provêm da exploração sexual.” Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas/. Acesso em: 28/07/2021

3 Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/ungift.html. Acesso em: 28/07/2021.

4 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global report on Trafficking in Persons, 2020. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 28/07/2021.

5 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global report on Trafficking in Persons, 2020. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 28/07/2021.

6 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global report on Trafficking in Persons, 2020. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 28/07/2021.

7 Tráfico de Pessoas

Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;

IV - adoção ilegal; ou

V - exploração sexual.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:

I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;

II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;

III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou

IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.

§ 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.”

8 Relatório Brasil disponível em: https://www.state.gov/reports/2021-trafficking-in-persons-report/brazil/. Acesso em: 28/07/2021.

9 Disponível em: https://monitora87.org/visualizaplano?_token=2t2fTLrCrgJVzSE3tsoDy9r6KggUpdzPiNrsxq5s&idplano=eyJpdiI6IlpsYmtZOHdvS0thUG16TWFXZ3JzOEE9PSIsInZhbHVlIjoiQkpaTjdyY2I4Snc3ZFNhNUlXWVkrZz09IiwibWFjIjoiOTQxMjY0MmEyMzNmYTI5MmExMjMxZmQ0ZWU5MmQ5YTNhZmJkOGViNDVjMjBjZTlmOTQ3MmIxNjZhM2FkMmVlYSJ9&_idioma=pt. Acesso em: 28/07/2021.

10DEPARTMENT OF STATE. Trafficking in persons report. June, 2021. USA. Disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2021/07/TIP_Report_Final_20210701.pdf. Acesso em: 28/07/2021